Aborto, questão política
As três semanas que passei no Quênia foram importantes para a politica do pais. Marcaram o fim do cadastramento de eleitores para o referendum constitucional que acontecera no mês de agosto. O cadastramento é livre e somente os inscritos poderao votar "sim" ou "nao" para a nova constituiçao proposta. Presenciei muita propaganda na TV e radio, além de filas enormes nos postos de cadastramento. Toda essa empolgaçao me trouxe uma profunda esperança no futuro democratico do pais.
Um adendo: os quenianos têm uma ferida ainda mal cicatrizada em sua historia recente. Em 1998, o resultado das eleiçoes presidenciais foram contestados com muita violência, um inicio de guerra civil. Basta conversar alguns minutos sobre politica com um queniano que o "1998 post-elections" vem à tona.
Levei uns dias para perceber duas nuances desse cadastramento de eleitores: 1. as principais incentivadoras eram as igrejas cristas. 2. apesar da campanha em si nao ter começado, havia muita propaganda para o "nao"! Por quê? Porque a constituiçao proposta prevê o direito ao aborto para mulheres que corram riscos com a gravidez.
A atual constituiçao queniana criminaliza a interrupçao voluntaria da gravidez, prevendo prisao para a mulher e para quem a auxilia. A nova constituiçao mantém o status de crime, mas cria a exceçao dos casos de risco de morte para a mae - nao muito diferente do que prevê a constituiçao brasileira.
O fato de nao ter escolha sobre a gravidez leva 4 milhoes de africanas a praticarem aborto clandestino e a mais de 300 mil mortes a cada ano no continente. A pratica é legalizada apenas na Africa do Sul, Cabo Verde e Tunisia.
No Quênia, onde prostituiçao, estupro e Aids sao uma rotina cruel (nao é preciso procurar muito para conhecer vitimas; volto a tratar do assunto mais tarde) ha pelo menos 300 mil casos de abortos clandestinos e 2 mil mortes a cada ano.
A nova constituiçao é esperada ha mais de vinte anos e vem regulamentar questoes importantes da fragil democracia queniana. O processo foi interrompido em 1998, mas voltou a partir de 2004, com apoio internacional. Todavia, por causa desse topico que seria um avanço no direito da mulher, toda a constituiçao esta seriamente ameaçada.
Alguns conhecidos me disseram que essa pequena (mas forte!) mudança foi propositalmente feita pelos conservadores. Assim, eles teriam apoio nacional para cancelar toda a constituiçao que nao lhes convém. Ou seja, tema sério e delicado usado apenas como instrumento politico. Como conquencia, infelizmente, a mulher, uma vez gravida, perde mesmo o direito fundamental à vida...
A imensa-gigantesca-maioria das pessoas com quem discuti (na verdade, so conheci uma pessoa a favor dessa linha) usavam argumentos que ja cansei de ouvir no Brasil: "a vida começa na concepçao"; "aborto é um assassinato"; "se o aborto fosse liberado você nao estaria aqui" (!!); "as mulheres vao achar que podem sair por ae engravidando" (!!!). Ou seja, os quenianos também confundem interrupçao voluntaria da gravidez com infanticidio e com método anticoncepcional. O que definitivamente nao é.
Mais detalhes sobre a questao queniana nessas otimas reportagens do canal France 24 (em francês aqui e em inglês aqui).
Aborto no Brasil é um assunto que fujo. Nao porque nao esteja convicta das minhas opinioes, mas porque cansei de repeti-las. Num pais que tem dificuldade de colocar em pratica a Lei Maria da Penha e que pipocam casos como o da menina de mini-saia, tenho a impressao de que nunca teremos uma discussao minimamente séria sobre os direitos da mulher no que diz respeito ao "seu mais sagrado papel" que é a maternidade.
O que dizer do Estatuto do Nascituro, que esta tramitando na Câmara dos Deputados brasileira? Essa nova lei considera que a vida começa na concepçao e que o nascituro é um sujeito de direito. Assim, mesmo as mulheres que abortam nos casos previstos pela nossa constituiçao seriam criminosas. E pior: nos, que defendemos claramente e publicamente o direito ao aborto poderiamos ser enquadradas por apologia ao crime! Além disso, o tal estatuto prevê uma "bolsa estupro" à vitima que nao abortar. Vejam detalhes no site das Catolicas pelo Direito de Decidir.
A realidade das mulheres brasileiras nao é muito diferente das africanas: 1 milhao de mulheres se submetem à abortos clandestinos e por volta de 400 mil precisam ser hospitalizadas a cada ano. Nao ha dados seguros sobre o numero de mortes, mas estima-se que os abortos inseguros sao a quarta causa de morte materna no Brasil.
Mesmo com duas mulheres pre-candidatas à presidência do Brasil, aposto um Chicabon que a descriminalizaçao do aborto nao vai ser tema de campanha. Nao dah, é suicidio politico. Os politicos à favor vao sair pela tangente enquanto aqueles que defendem o Estatuto do Nascituro vao encher suas campanhas de blablabla.
Sim, a condiçao da mulher no continente africano é muito dura e triste. Mas no Brasil nao é muito diferente. Nao?
Pra terminar, deixo uma das musicas mais tocadas em Nairobi nessas ultimas semanas. Com letra em inglês: