Pão, o terceiro elemento
Os franceses têm uma relação engraçada com o pão nosso de cada dia. Criei uma teoria de que, para eles, o pão é um terceiro elemento: não é uma comida nem uma... ahm... não-comida. Eh pão, assim, simplesmente.
Pão é o genérico para uma infinidade de sabores, geralmente muito bons. A forma mais tradicional é a baguette, mas há vários outros. Meus preferidos contém sementinhas como linhaça e aveia e são esfarinhados por cima. Se bem que mesmo o pãozinho do bandejão da faculdade é muito bom!
Basta um passeio rápido pelas ruas francesas para notar o estereótipo do francês e sua baguette em baixo do braço - posição essa incrivelmente cômoda devido à longura do objeto, especialmente quando se carrega outras coisas. Começa aí a relação diferente: pão não é outras coisas.
Para começar, a embalagem. Enquanto a maior parte dos produtos têm excesso de embalagem, o pão ganha um papelzinho mixuruco em torno. As vezes um saquinho de papel, um luxo, sempre menor, de maneira que a ponta sempre fica de fora. Muitas vezes, principalmente aqui no interior, nada. Pois é, nada, nadica: pega seu pãozinho com a mão que pegou o dinheiro e sai no sol ou na chuva, coloca no banco do ônibus, na cestinha da bicicleta, debaixo do carrinho de bebê...
Então, o dinheiro. Algumas padarias têm uma espécie de pratinho no balcão ao lado do caixa. Nesses casos não se deve entregar o dinheiro na hora de pagar, mas colocá-lo lá. Segundo fontes confiáveis (minha sogra) é porque como geralmente se paga o pão com moedinhas, isso evita que a gente encoste a mão na mão do atendente. Poréeem... ele pega o meu pãozinho com a mão!! é o mesmo que colocar a mão dele na minha boca!! Minha conclusão é que é um cuidado com a saúde dos funcinários da padaria.
Enquanto tudo tem seu prato - mesmo no restaurante mais simples costuma-se trocar de prato entre a entrada e o prato principal - o pão fica em cima da mesa. Não importa se tem toalha. Se for um pique-nique, fica em cima da grama sem problemas. Reparo que muita gente pega o pãozinho do bandejão, carrega para a biblioteca e deixa sobre a mesa de estudos, empoerada desde as férias de verão.
Faca não é obrigatória para cortar a baguette, já que as de boa qualidade são fáceis de rasgar - e quem liga para migalhas? Faca é definitivamente não-obrigatória, mesmo para comer: é super normal usar um pedaço de pão (o seu!) para empurrar a comida sobre o garfo. E para limpar o prato do molho que restar também - muitas vezes eu acho a combinação molho e pão melhor que o prato em si!
Como um bom terceiro elemento, o pão causa algumas obsessões. Loic come até pizza com pão. Ele chega em casa e, se não tem pão, sai para comprar, mesmo que a gente não jante em casa nos próximos dias. No supermercado, é a primeira coisa que ele pega, de medo de no final da compra não ter mais!
Jogar o pão velho e duro fora é uma heresia, não pode de jeito nenhum! Então guardamos e quando já tem uma boa quantidade, vamos dar para os cavalos em algum pasto por aqui. O problema é que não tem muitos cavalos (nem pasto!) agora no inverno, então o estoque de pão velho está crescendo... Ah, muita gente faz uma sobremesa com os pães velhos, algo como a nossa rabanada, mas melhor, o pain perdu. Pena que, vocês sabem, sou um desastre na cozinha, nunca nem tentei.
Comentei sobre a minha teoria do pão terceiro elemento com a minha coleguinha mais fresca. Para carregar uma maçã na bolsa, por exemplo, ela embala com papel toalha ou um saquinho alimentício. Mas para carregar o pãozinho do bandejão para casa, ela coloca diretamente na bolsa, sem problema algum. Agora ela concorda comigo ao ver alguns meninos com seus pãezinhos desfilando no bolso da frente da mochila: "você tem razão, os franceses não tratam o pão como uma comida qualquer..."
A conclusão da minha elaboradíssima teoria é: pão é pão. Rigor científico ao máximo.